quinta-feira, 24 de novembro de 2016

O Complexo Sr. Ausente

Foi na pacata cidade de Prados, em Minas Gerais onde tudo começou. Um cachorro híbrido, fruto de um relacionamento complicado entre um lobo guará perdido e uma cadela vira-latas que nasceu Totó. Quem deu esse nome para ele não é tão importante quanto a história dele, afinal de contas, nem seu passado e nem seu futuro fazem parte da história, embora tudo faça parte da própria vida. Totó foi criado por um garoto que, honestamente, não sei o nome, mas um dia ele seria reconhecido por raras pessoas pela alcunha de Sr. Ausente. Totó não é um cachorro, e não é um lobo, ele é os dois ao mesmo tempo, porém, com o passar das experiências ao longo de sua curta vida de 15 anos, se tornou um animal covarde, tão medroso que se assustava com a própria sombra, que se esconde do sol onde ele preferia ficar de olhos bem fechados receptando o calor. Totó chegou a ser atropelado por um carro antigo de 73, um fusca pra ser exato, por esse motivo vivia com receio de andar no meio da rua, sempre andava na calçada, porém, naquela pequenina cidade, poucas ruas tinham calçadas, a maior parte do chão era feio de poeira e estrada. Pura poesia. Sem rimas, mas é sim, pura poesia.
Bom, meu nome é Èmigê, é um nome psicoluso-neobritânico-latinoamericano que me dá liberdade suficiente para ser bullynado na faculdade. Totó é meu amigo, tal como foi, também tal como motivará outros cães a serem parecidos com ele, mesmo sem saber que ele existiu. Agora, preciso comentar um detalhe profundamente complexo: Não sou o Sr. Ausente, sou apenas o narrador dessa história, mas qualquer semelhança é apenas uma fútil coincidência, eu acho.
Totó teve vários amigos-donos. Aqueles que se responsabilizavam por cuidar das suas necessidades básicas a troco da sua presença simpática. Seus dentes eram bem tortinhos, mas isso não tem diferença nenhuma no contexto da história, é só pra encher linguiça mesmo. Aliás, Totó adorava linguiça, mas ninguém nunca escovava seus dentes, o que me fez suspeitar de que ele sofreu muito com dores de dente. Os únicos dentes que sempre foram certinhos eram os caninos. Apesar da boca fedida de carniça, Totó passou por uma experiência que mesmo depois da sua morte, ele continuou existindo. Como se tivesse renascido, tipo uma ave Phoenix, só que não.
Totó aparentava saber que era híbrido. No seu instinto canino, nunca correu atrás de nenhuma cadela. Tão pouco roçava na perna da visita que chegava às vezes na casa de quem o abrigava. Só vou ficar devendo a informação dele ter trepado com alguma loba.
Totó chegou a sofrer violência física quando tinha cerca de 3 anos. Foi maltratado até os 10, quando cheguei na sua vida para não fazer nenhuma diferença a não ser a de não maltratá-lo. Sempre cuidei dele como se fosse meu irmão mais velho. "Nunca" tive irmão mais velho. Bom, vamos direto ao assunto. Totó aparecia uma vez ou outra na minha casa até começar a demonstrar maior afeto. Naqueles dias eu estava ajudando uma nobre garota chamada Simeone, que teve problemas sérios de violência conjugal. Seu namorado era extremamente forte e não havia policiamento ou assistentes sociais para controlar esse tipo de caso. Totó salvou a vida de Simeone, mas sem precisar dar um só ruído de ódio contra o opressor. A única coisa que ele fez foi passear pela rua de terra enquanto que aquele ogro aproximava-se da minha casa onde Simeone estava a me ajudar com a matéria da escola. Aparentou-me fluir um sentimento de informação que dizia que algo de ruim estaria para acontecer.
Quando senti isto, Simeone começou a demonstrar uma inquietação que desconcentrou-a da sua fixação pela matéria que estudávamos. Vi sua mão tremendo e perguntei: - Este seu tremor é porque você está esperando aquele seu namorado grosseiro que te bate quando está embriagado de algum ódio? - Então ela confirmou minha suspeita. Neste momento pressenti que ele se aproximava.
Eu não sabia que ele ainda estava a uns 2 Km de distância, senti como se ele estivesse já a uns 100 metros, bem na esquina, por isto, tentei dar uma palavra de encorajamento para Simeone: - Não vou deixar ele te bater! Olha, vou ser sincero, se eu tiver que brigar com ele, ele pode até me bater, mas eu também vou apanhar! - Simeone riu pela frase sem nexo que eu lhe dissera. Depois da sua risada é que fui entender o que havia dito. Lógico que ri também. Esta risada foi o suficiente para ela se acalmar diante do imprevisível futuro próximo. Acontece é que Totó também estava vindo nesta hora, e sem pensar em absolutamente nada, ele impediu a chegada do grosseiro que já estava apenas a 1 Km de distância apenas cruzando uma esquina rapidamente. O que de fato aconteceu, foi que o agressor havia se esquecido de uma mochila que havia ficado na casa do seu pai, que ficava bem no centro da pequena cidade de Prados, e até chegar lá, eram uns 8 Km de distância. Não entendi bem a circunstância onde Totó fez aquele troglodita um pouco alfabetizado se lembrar da mochila que esquecera na casa do vereador da cidade (seu pai), a única coisa que sei é que isto tardou ele o bastante para que Simeone já não estivesse mais lá na minha casa na hora que ele chegou.
Agora, o leitor há de concordar comigo! O mais estranho não foi este fato, e sim o que me levou a ter noção do que acontecia enquanto eu não estava presente.
A questão é que não era eu, eu sou apenas o narrador da história, mas isto aconteceu comigo exatamente desta maneira, de fato! A profundidade desta questão está na trajetória de um animal híbrido. Esta persona humana não sou eu! Mas não sei como descrever a transposição do Sr. Ausente para o presente da minha vida. Então a maneira mais prática de fazer isto, foi quando percebi que na verdade, este personagem já existia, desde tempos antigos. Muito, muito antigos!! Ele sempre esteve alí, mas ninguém via.
Olá! Leitor! Meu nome é Èmigê, e eu sou a história de um super-herói que necessita de uma história fora de si para existir. Vou continuar relatando mais fatos ocorridos sobre ele, porém, preciso afirmar que esta figura escolheu os caninos para produzir a sua aurora, e em outrora, aparece na forma de um ser humano que não precisa lutar contra seus inimigos. Sua força está na palavra, no silêncio e na sua presença. Apresento-lhe o princípio da história do Sr. Ausente!